Nota do Cofecon – Não se discute uma qualificada Reforma Tributária

Na primeira quinzena de dezembro de 2018, uma comissão especial da Câmara dos Deputados aprovou proposta de Reforma Tributária que tem como ponto básico a unificação de nove tributos em um só, o Imposto sobre Operações de Bens e Serviços (IBS), ressaltando o argumento de que, assim, estaria sendo alcançada uma simplificação dos procedimentos fiscais.

A alegada simplificação é importante, uma vez que diminui os trabalhos e os custos que as empresas empregam no cumprimento das obrigações, porém não resolve a mais grave deformação do sistema tributário brasileiro: a acentuada regressividade do modelo, traduzida pela alta incidência de tributos indiretos, que alcançam mais intensamente as operações econômicas que envolvem o consumo de bens e serviços, em detrimento da tributação direta sobre as altas rendas e sobre o estoque de riquezas.

A proposta em nada melhora a deformação aqui referida, uma vez que os nove tributos – Imposto Sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), Imposto Sobre Serviços (ISS), Imposto Sobre Produtos Industrializados (IPI), Programa de Integração Social (PIS), Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins), Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide), Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público (Pasep), Imposto Sobre Operações Financeiras (IOF) e Salário-educação – são todos indiretos e ficariam unificados em um outro tributo também indireto, o IBS. A iniciativa se encaixa em algo que, na linguagem mais popular, seria definido como “trocar seis por meia dúzia”, considerando que sua potencial aplicação não resultaria em nenhuma repercussão de natureza econômica e muito menos social. Assim posto, é possível afirmar que não há uma reforma tributária em curso.

A tributação indireta deve ser aplicada de forma seletiva, de modo a não alcançar pessoas de baixa renda quando elas adquirem bens ou serviços essenciais (alimentos e medicamentos, por exemplo), até para obedecer a dois princípios constitucionais postos no artigo 153/§ 3º/I, no caso do IPI, e no artigo 155/§ 2º/III, no caso do ICMS, ficando reservada a sua aplicação mais intensa para operações que envolvam produtos e serviços não essenciais, como os artigos de luxo, bebidas e cigarros. (Detalhe: o ICMS é o tributo brasileiro de maior expressão econômica em termos de arrecadação).

A mesma incidência indireta permite algumas facilidades ao ente tributante, na medida em que o contribuinte (o pagador dos impostos) não se dá conta, de imediato, de que está sendo alcançado pelos tributos, já que estes estão inclusos nos preços. É de se imaginar o caso de um indivíduo situado num degrau inferior da escala social, um pedinte de esmolas, por exemplo, que vai ao armazém ou supermercado para usar o produto da sua mendicância na aquisição dos básicos leite, pão, arroz, feijão e açúcar, e tem que deixar no caixa algo em torno de 20% do valor das compras que será destinado ao pagamento de obrigações fiscais. Tal situação permite a absurda conclusão: no Brasil, até os pedintes são fortemente alcançados pela tributação.

A tributação direta, ao contrário, é aplicada de forma mais justa, ao incidir sobre a renda, mais marcadamente sobre as altas rendas, e sobre o estoque de riquezas patrimoniais. No Brasil, infelizmente, essas hipóteses de tributação têm baixo significado econômico, cabendo citar que no ano de 2015 a arrecadação com os seis tributos sobre a propriedade (Sobre Grandes Fortunas, ITR, ITCMD, IPVA, IPTU e ITBI) alcançou a marca e 1,45% do PIB, num universo de 32,11% do PIB correspondente à carga tributária total registrada naquele ano (dado coletado em A Reforma Tributária Necessária, 2018: Anfip, Fenafisco).

De outra parte, o Imposto de Renda (IR) brasileiro também é de baixa expressão econômica em termos de arrecadação, figurando em 48º lugar numa relação que compara a aplicação desse tributo em 57 países da OCDE – Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – e da América Latina, dados de 2015 (fonte: Anfip, Fenafisco). Está previsto no Regulamento do Imposto de Renda, objeto do Decreto nº 3.000/99 – complexo diploma legal composto de mais de 1.000 artigos e mais um conjunto de outras leis –, uma série de dispositivos desonerativos, sendo o mais falado aquele que dispensa a incidência do imposto nos ganhos de lucros e dividendos auferidos por pessoas físicas ou jurídicas, domiciliados no Brasil ou no exterior, nos termos da Lei nº 9.249/95, em seu artigo 10.

A proposta apresentada pelos parlamentares está em consonância com o que sempre foi praticado no Brasil. Os que detêm as rédeas sociais – os ricos e poderosos – nunca se dispuseram a devolver à sociedade parte do que a mesma sociedade lhes transfere no processo de permanente acumulação/concentração da riqueza. Prova marcante disso é o caso do Imposto sobre Grandes Fortunas, que nunca saiu do imaginário do legislador constitucional, fazendo do artigo 153/VII (dispositivo que prevê o tributo) um enfeite, uma figura de arabesco, já que não possui nenhum significado prático, dado que, até hoje, ainda carece de uma lei complementar para a sua efetivação.

Com a indicação da Comissão fica perdida uma excelente oportunidade para correção daquela grave deformação do modelo tributário, cuja adequação poderia gerar valiosos desdobramentos positivos de natureza econômica e social, considerando que o instrumental tributário dispõe de eficazes ferramentas para tal fim.

Nesse passo, alguns dados merecem destaque: em 2015, no Brasil, 22,7% do produto da arrecadação tributária foi proveniente de tributos sobre a renda e o patrimônio, 49,7% foi proveniente do consumo e 27,6% definidos como “outros” (basicamente incidências sobre a folha de pagamento). Nos países mais evoluídos – EUA, Japão, Alemanha, Reino Unido, França, Itália e Canadá – as práticas tributárias estão pautadas numa lógica bem diversa, na qual a tributação direta tem mais importância. Nos Estados Unidos, por exemplo, naquele mesmo ano de 2015, a arrecadação com Imposto de Renda e com tributos que incidem sobre o patrimônio representou 59,4% do total arrecadado, enquanto 17% veio da tributação sobre o consumo e 23,6% de “outros”; os dados médios para os países da OCDE são, na mesma sequência, 39,6%, 32,4% e 28%. (Fonte dos dados: Anfip, Fenafisco).

O exemplo norte-americano, com uma tributação direta mais expressiva do que a tributação indireta, se reproduz nos demais países aqui tidos como mais evoluídos, podendo ainda acrescentar no mesmo contexto as práticas desenvolvidas na Dinamarca, Austrália, Nova Zelândia, Suíça, Irlanda e Noruega. Ao optarem por esse modelo de tributação, esses países desenvolvem algo que pode ser definido como justiça fiscal, em que se busca tributar as pessoas (não as empresas) com maior capacidade contributiva, retirando dos pobres o ônus pelo pagamento do custo tributário.

Nesse contexto, é necessário entender que a busca por práticas idênticas àquelas aplicadas naqueles países é o que construirá uma efetiva reforma tributária no Brasil. Por enquanto, a proposta apresentada pela Câmara dos Deputados está longe disso, dado que concentrada na alteração ou simplificação de tributos indiretos.

CONSELHO FEDERAL DE ECONOMIA